ECA: 28 anos de avanços nos direitos das crianças e inúmeros entraves nos processos de adoção
Nesta sexta-feira, dia 13, o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Lei 8.069/90) completa 28 anos. A norma é considerada uma das mais modernas do mundo. No entanto, especialistas apontam o ponto nevrálgico do estatuto: a adoção.
“O estatuto foi criado por exigência da Constituição Federal e representou, à época, a lei mais moderna de proteção aos direitos das crianças e dos adolescentes do mundo e até os dias de hoje é uma grande referência para inúmeros países que querem inovar na proteção à infância”, observa o advogado Paulo Lépore, vice-presidente da Comissão da Infância e Juventude do IBDFAM. “É uma lei que muitos entendem que está à frente de seu tempo por estabelecer uma série de direitos e também uma estrutura de aplicação que não se adequaria às possibilidades políticas e fáticas que nós temos no Brasil”, diz.
O advogado considera que o ECA ainda pode ser muito explorado. “Ainda há muito o que se fazer em termos de aplicação do ECA e cada pessoa da sociedade e cada jurista; advogado; defensor público; promotor; juiz, tem seu papel nessa missão. Nós conseguimos perceber que quando os agentes, sejam eles jurídicos ou não, dedicam a sua vida à aplicação do estatuto, os resultados práticos são visíveis”, observa.
Benefícios implantados pelo ECA
Lépore esclarece que o ECA trabalha a partir das premissas de desjudicialização e municipalização do atendimento. “A ideia é que os direitos das crianças não precisem passar sempre pelo Poder Judiciário e que os municípios tenham grande poder na execução de políticas ligadas à infância. O que faz com que eles consigam então atingir as necessidades de cada localidade”, diz.
Nesse sentido, conforme o especialista, o estatuto rompe com uma “lógica antiquada” de que sempre que se trata de direitos das crianças, o Poder Judiciário tem que participar. “Ainda que, em relação a alguns direitos, o Poder Judiciário, efetivamente, tenha que participar, especialmente no que tange a dois grandes temas: o direito fundamental à convivência familiar e a apuração de prática infracional e aplicação de medidas de proteção e socioeducativas”, explica.
Para ele, a principal vantagem do ECA em relação ao Código Civil e ao Código Penal, nos termos de convivência familiar e resposta diante da prática do ato infracional, é o tratamento específico que leva em consideração o fato de que crianças e adolescentes são pessoas em estágio peculiar de desenvolvimento e que precisam de um tratamento que seja adequado à sua idade.
Ele expõe: “Em relação à família, o ECA traz a família extensa ampliada, que é aquela formada por parentes que vão além da unidade pais e filhos, parentes com os quais a criança convive, tem vínculos de afinidade e afetividade, representando o reconhecimento de que o afeto é um dos vetores que orientam as famílias, inclusive as famílias no ECA. Na parte infracional, nós temos um tratamento especializado, diferenciado para os adolescentes que praticam atos em conflito com a lei. O ECA estabelece um tratamento diferenciado, especialmente com a possibilidade de aplicação das medidas socioeducativas e que, segundo estatísticas, são mais eficazes, em termos de reincidência, do que as medidas penais”.
Entraves à adoção
“Quando da sua edição, logo após a Constituição Federal, o ECA veio para dar efetividade a gama de direitos e garantias assegurados pela Constituição às crianças e aos adolescentes. Foi muito significativo e ainda é um estatuto muito importante, mas em termos de adoção, o ECA está superado”, garante a desembargadora aposentada Maria Berenice Dias, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM.
Para ela, é “inconcebível uma legislação como o ECA que, por quatorze vezes, enfatiza a prioridade da filiação biológica deixando, expressamente, a adoção como último recurso”.
“Está mais do que comprovado, pelo número de crianças literalmente depositadas nos abrigos, algo escandaloso, que sensibilizou todo o IBDFAM, que isso precisa ser alterado”, afirma.
Paulo Lépore concorda. Para ele, em relação à adoção o ECA não tem conseguido cumprir o seu papel. “Inúmeros entraves, jurídicos e políticos, acabam levando a uma situação em que estamos hoje, com milhares de crianças nos abrigos, à espera de famílias. Isso se deve a entraves processuais previstos no ECA que fazem com que haja uma demora muito grande nos processos de destituição do poder familiar e com isso as crianças envelhecem nos abrigos e saem do perfil buscado por quem quer adotar. Assim se desenha um ciclo muito triste em que o sistema de convivência familiar se torna o grande vilão quando se trata da necessidade de colocação da criança e do adolescente em uma família”, diz.
Maria Berenice Dias critica o prazo de um ano e meio no qual o sistema busca a recolocação da criança na família biológica ou na família extensa. “Esses prazos que estão no ECA são ultrapassados. Nós precisamos ter um enfoque mais dinâmico com relação às práticas a serem realizadas para evitar este período absolutamente injustificável. Quando o Ministério Público ingressa com uma ação de destituição do poder familiar é porque o Estado já reconheceu que ninguém da família biológica tem condições de ficar com a criança. Para chegar a esta conclusão, já foram apresentados laudos, audiências concentradas com os juízes dos próprios abrigos, ou seja, é de todo descabido que essa criança já não seja disponibilizada de imediato em guarda, ainda que seja provisória, com quem está cadastrado para adotá-la. Esta é uma medida que, se não for requerida pelo Ministério Público, deve ser adotada pelo juiz, de ofício, mas isto precisa estar na lei, alguns juízes mais sensíveis e mais atentos fazem isso, mas a maioria não faz, por falta de legislação”, reflete.
Para ela, a adoção deve ser excluída do âmbito de abrangência do ECA e ter uma lei própria, “até porque a adoção nem sempre fez parte do ECA. Quando entrou para o ECA houve um retrocesso e todas as alterações feitas até hoje no ECA com relação à adoção são retrógradas e retardam a possibilidade de garantir às crianças a convivência familiar que lhes é assegurada constitucionalmente”.
Maria Berenice Dias destaca a importância do Projeto de Lei Estatuto da Adoção (PLS nº 394/2017), em trâmite no Senado, de iniciativa do IBDFAM. “Precisa haver uma revisão e é exatamente nesse sentido que o IBDFAM propôs o Estatuto da Adoção”, garante.
Paulo Lépore reforça que o Estatuto da Adoção tem por objetivo trazer um tratamento especializado à questão da convivência familiar, especialmente à questão relacionada à adoção. “A ideia é que o Estatuto da Adoção venha dinamizar os processos envolvendo convivência familiar de crianças e adolescentes e atacar frontalmente esse problema sério que nós temos da invisibilidade das crianças e adolescentes depositados nos abrigos Brasil afora. Então, apesar de nós termos muitos motivos para comemorar mais um aniversário do Estatuto é necessário pensar na existência de um novo estatuto voltado ao instituto da adoção”, diz.